Os gastos com cartão corporativo da Presidência da República, usado para bancar despesas sigilosas do presidente Jair Bolsonaro, dobraram nos quatro primeiros meses de 2020, na comparação com a média dos últimos cinco anos. A fatura no período foi de R$ 3,76 milhões, valor que é lançado mensalmente no Portal da Transparência do governo, mas cujo detalhamento é trancado a sete chaves pelo Palácio do Planalto.
Em dezembro do ano passado, o Estadão revelou que o governo passou a ignorar uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e se recusa a explicar como tem usado o dinheiro público via cartões corporativos. A Presidência tem justificado, nos pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação, que a abertura dos dados e notas fiscais poderiam colocar em risco a segurança do presidente.
O fato é que, neste início de ano, essas despesas deram um salto e fugiram do padrão do que gastaram os ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer no mesmo período. Foge do padrão, inclusive, do que gastou o próprio Bolsonaro no seu primeiro ano de mandato, quando apresentou uma despesa de R$ 1,98 milhão de janeiro a abril.
O cálculo leva em consideração os pagamentos vinculados à Secretaria de Administração da Presidência da República. Além de eventuais despesas em favor de Bolsonaro, a secretaria é responsável por gastos de familiares do presidente e das residências oficiais. Responde ainda por pagamentos corriqueiros da Presidência.
Mas não foi só a fatura dos cartões ligados diretamente a Bolsonaro que explodiu neste início do ano. O total de despesas sigilosas da Presidência, que inclui também gastos do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) aumentaram na mesma proporção. Foram R$ 7,55 milhões em despesas sigilosas da Presidência da República de janeiro a abril, 122% a mais do gasto no mesmo período do último ano do governo Temer. Em cinco anos, o mais próximo disso foram os R$ 4,69 milhões (em valores corrigidos pela inflação) despendidos em 2015, na gestão de Dilma.
É um dinheiro que, a não ser alguns integrantes do próprio governo, ninguém mais sabe para onde foi. Nem mesmo a data em que a transação foi realizada é conhecida.
Antes de ser eleito, Bolsonaro foi um crítico ferrenho dos gastos com cartões corporativos e, principalmente, do possível sigilo dos extratos. Em 2008, em discurso na Câmara dos Deputados, ainda como parlamentar (na época filiado ao PP) desafiou o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva a “abrir os gastos” com o cartão.
No último 24 de abril, dia em que o então ministro Sérgio Moro pediu demissão, Bolsonaro fez um longo discurso no Palácio do Planalto para responder o novo desafeto. Entre diversos assuntos abordados – que foi do aquecedor da piscina do Palácio da Alvorada à vida amorosa do filho mais novo – afirmou que tem sido econômico no uso do cartão. “Na vida de presidente da República eu tenho três cartões corporativos, dois são usados para despesas, as mais variadas possíveis, afinal de contas mais de 100 pessoas estão na minha segurança diariamente, despesas de casa, normal”, disse. “E um terceiro cartão que eu posso sacar R$ 24 mil por mês sem prestar contas. Eu posso sacar R$ 24 mil e gastar onde bem entender. Quanto eu gastei dessa verba desde o ano passado? Zero”, disse. Bolsonaro não mencionou, no entanto, que os gastos totais dos cartões corporativos da Presidência sob sigilo superaram os R$ 14 milhões no ano passado.
Na semana passada, o deputado Federal Elias Vaz (PSB-GO), que integra a Comissão de Fiscalização da Câmara, ingressou com um mandado de segurança no Supremo cobrando do Palácio do Planalto a divulgação dos gastos com cartão corporativo. A ministra Cármen Lúcia é a relatora do caso.
O parlamentar invoca a decisão da Corte de dezembro e argumenta que nem tudo o que é comprado pela Presidência está abarcado nas regras que permitem sigilo. “A gente espera uma austeridade do poder público, mas o presidente quase triplica os gastos com cartão corporativo no mês de março, que é onde começa as consequências na economia da covid-19. Devia conter seus gastos, mas não contém, gasta muito e ainda quer esconder os motivos”, afirmou o deputado.
Na ação, Vaz afirma que, entre os gastos secretos da Presidência da República, há em 2020 pelo menos 104 situações em que foram desembolsados valores acima de R$ 17,6 mil. Em uma única oportunidade, houve um gasto de R$ 79.372,41 no cartão, diz o deputado na ação, lembrando que todos esses valores estão em sigilo e, para serem fiscalizados, parlamentares e a sociedade precisam ter acesso ao detalhamento.
No processo, Vaz diz ter identificado situações ainda mais “gritantes”. “Há uma série de indicativos de saques que vão de R$800 até R$20 mil sem que possa ser identificado onde este dinheiro foi gasto, com quem, com o que”, afirma. “O presidente, que em outras administrações criticava os gastos com cartão corporativo, depois que assume adota outra postura”, conclui o deputado.
Para o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco, quanto menores forem esses gastos secretos com os cartões corporativos, melhor. “A transparência deve ser a regra e o sigilo a exceção. O governo está na contramão”, afirmou ele. “Em nome da segurança do Estado, frequentemente, as autoridades escondem despesas banais. Muitas vezes para ocultar o óbvio. Todos os gastos da Presidência são pagos pelos brasileiros. Se essa relação de compras fosse disponibilizada as despesas seriam, certamente, objeto de crítica”, disse.
Sem dar detalhes, o Palácio do Planalto afirmou que a maior parcela de gastos efetuados com os cartões corporativos do governo federal foi realizada em apoio às viagens presidenciais em território nacional e viagens internacionais. Neste ano, o presidente Jair Bolsonaro esteve na Índia em janeiro, participou da posse da presidente do Uruguai, no início de março e, no mesmo mês, viajou com uma comitiva de 31 pessoas aos Estados Unidos.
O governo alega ainda que houve um aumento nos gastos totais da Presidência, em março deste ano, pois os cartões vinculados ao Gabinete da Segurança Institucional (GSI) foram utilizados para o pagamento dos “serviços de apoio de solo e comissaria aérea na viagem para a China, realizada em fevereiro de 2020, para o resgate de 34 brasileiros isolados em Wuhan, em razão do surto epidemiológico inicial da covid-19”.
Coordenada pelo Ministério da Defesa, a Operação Regresso à Pátria Amada Brasil ocorreu entre 5 e 9 de fevereiro, fase do envio e retorno dos aviões, e seguiu com mais 14 dias de confinamento dos resgatados na Base Aérea de Anápolis (GO). Documentos do Comando da Aeronáutica revelados pelo Estadão mostraram que a operação custou R$ 4,6 milhões aos cofres públicos – valor que não incluía os gastos citados pelo GSI.
Sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal, o Palácio do Planalto disse que a Lei de Acesso à Informação (LAI), de 2011, permite manter sob sigilo informações que possam colocar em risco a segurança do presidente da República e de seus familiares. Para isso, se baseia em um parecer da Advocacia-Geral da União para manter em segredo boa parte dos gastos com cartão corporativo.
Estadão Conteúdo